CÃES E O EXERCÍCIO


Este artigo tem como finalidade, o esclarecimento de quais os efeitos que o exercício produz no cão.  Tanto no corpo humano como na grande maior parte dos mamíferos -  a sustentação , movimento e protecção – são funções do esqueleto ósseo e do esqueleto muscular.  Assim sendo, e se nos debruçarmos sobre a parte articular e miofisiológica chegaremos com facilidade às afinidades existentes entre o homem e (neste caso) o cão.  Logicamente ao longo deste artigo vamos tentar ultrapassar a técnicidade do problema e tentar reproduzi-lo da maneira mais compreensível e simples possível.  No entanto, perdoar-me-ão se ao longo desta explicação, aparecerem termos e designações menos comuns ao nosso vocabulário do dia-a-dia.  Vamos portanto começar por um pequeno exemplo comparativo entre o esqueleto ósseo humano e o canino. Todos nós sabemos, que a formação mestra do nosso esqueleto ósseo reside na existência de uma coluna vertebral, que tal como o mastro de um navio é completada por dois mastros transversais.  Um ao nível dos ombros que tem o nome de cintura  escapular,  outro ao nível da bacia que tem o nome de cintura pélvica. Da cintura escapular partem os membros superiores e consequentemente da cintura pélvica partem os membros inferiores.  Ora nos nossos cães (embora sem a posição erecta dos humanos), possuem igualmente a mesma imprescindível e básica estrutura.

                      

FIG. 1   

 FIG. 2

Anatomy – Drawing School - Konemann

No corpo humano, os membros superiores são regra geral utilizados em tarefas mais específicas e especializadas, enquanto que os membros inferiores são utilizados (grosso modo), na locomoção.  Nos cães, embora tanto os membros da cintura escapular como os da cintura pélvica sejam utilizados na locomoção, existe igualmente uma certa apetência dos membros da cintura escapular para tarefas que exigem mais coordenação e destreza.  É evidente, que as aptidões atrás referidas dependem de certa forma dos graus articulares mas principalmente do sistema neuro-muscular, sistema esse a que a seguir nos referiremos. O músculo é um tecido formado por células multinucleadas que se alinham ao longo da parede celular (sarcolema). Essas células tem o nome de fibras musculares.  O conjunto de fibras musculares tem o nome de fascículo sendo finalmente o músculo um conjunto de fascículos musculares.

  FIG. 3

Skeletal Muscle – Form and Function – Alan J. McComas

Para que os músculos possam exercer as suas funções de contracção e relaxamento são necessárias duas componentes:

1 – Ligação ao sistema nervoso.

2 – Ligação a superfícies articulares do esqueleto ósseo.

Assim para o ponto 1 existem ligações mioneurais que no seu conjunto músculo nervo têm o nome de unidades motoras. 

Para o ponto 2 existem ligações miotendinosas que genericamente têm o nome de tendões.

Desta forma estão criadas as condições necessárias para o movimento.

 

                         FIG. 4

FIG. 5

 
Karp’s  Cell and Molecular Biology Anatomofisiologia Estudos Práticos –    Edições FMH

figura 4 mostra-nos microfotografias de unidades motoras, onde nos é possível distinguir (figura central) várias fibras musculares ligadas a várias terminações nervosas, (motoneuronas).

A figura 5 mostra-nos assinalado por quatro traços a negro os tendões das cabeças longa e curta do biceps brachii (parte superior da imagem) inseridos respectivamente na fossa biceptal e na apófise coracóide. Na parte inferior da imagem pode ainda ver-se o tendão único do biceps brachii inserido no rádio.  Comparemos agora, não as unidades motoras pois estas são comuns a todos os animais vertebrados (e mesmo alguns invertebrados), mas as ligações mioten- dinosas do mesmo músculo no cão:

 

FIG. 6

Anatomy – Drawing School - Konemann

O músculo assinalado na gravura  com o número 3 representa no cão o biceps brachii com os respectivos tendões de origem e de inserção.

Com esta muito breve e básica explicação do esqueleto ósseo, suas articulações,  esqueleto muscular e suas ligações nervosas, creio podermos aprofundar um pouco mais o sistema neuromuscular e a sua relação com o exercício.

As unidades motoras de que já nos referimos, correspondem basicamente à seguinte classificação : LENTAS  e  RÀPIDAS.                                                      

Objectivamente esta classificação, representa não só o tipo morfológico, mas igualmente o desempenho fisiológico destas unidades motoras.  Morfologicamente as unidades motoras lentas são mais pequenas e constituídas por fibras musculares que têm o nome de fibras tipo I.  Ao contrário as unidades motoras rápidas são consideravelmente maiores e constituídas por fibras musculares que têm o nome de fibras tipo II . Fisiologicamente as diferenças são mais complexas, em maior número, e mais marcantes. Vamos a seguir descrever algumas destas diferenças (não todas), a fim de se poder perceber a sua actuação nos dois tipos de exercício – aeróbio oxidativo – e – anaeróbio glicótico láctico

 

 

FIG. 7

Journal of Neurological Sciences 18(1973)

 

Exemplo da distribuição de  fibras musculares (células)corte transversal
Fibras tipo I a cinzento, e Fibras tipo II a preto.

As propriedades fisiológicas das fibras musculares, normalmente descritas por vários autores, são as seguintes: velocidade de contracção; força de contracção; fadiga; cor vermelha; mioglubina; capilariedade; discos ou linhas Z; glicogénio; enzimas oxidativos; lípidos intracelulares; velocidade da libertação de cálcio; formação do retículo sarcoplasmático; afinidade da  troponina ao cálcio.  Seria fastidioso, para quem não está interessado na fisiologia e sim na parte prática da função muscular ter de se sujeitar a uma longa e profunda descrição de todas as propriedades acima descritas.  Assim sendo, resolvemos escolher as mais  marcantes e mais simplesmente identificáveis, que prescindem de complicadas descrições científicas, sem no entanto deixarem de ser importantes componentes na fisiologia muscular.

1 – Velocidade de Contracção: a diferença da velocidade de contracção, entre fibras tipo I e II é considerável.  As fibras tipo I têm velocidades de contracção na ordem dos 110ms(milisegundos), enquanto que as fibras tipo II andam á volta de 50ms.  Como se pode ver a velocidade de contracção das fibras tipo II é menos de metade que as fibras tipo I.

2 – Força de Contracção: considerando que as fibras lentas não são capazes de rapidamente encurtar o suficiente a fim de gerar uma dada força (esforços máximos ou sub-máximos), as de contracção rápida são capazes de o fazer.

3 – Fadiga : a problemática da fadiga muscular, engloba um largo espectro de situações, que exigem um conhecimento bastante profundo sobre o funcionamento de substratos energéticos tais como fosfocreatinas, ATP’s, glicogénio, bem como o  papel do cálcio na contracção muscular, a  produção excessiva de ácido láctico, as  descidas sarcoplasmáticas do pH etc., etc., daí que, ficaremos simplesmente com a noção de que as fibras tipo I (lentas), têm a capacidade de funcionar, por longos períodos de tempo em esforços de baixa intensidade, enquanto que as fibras do tipo II funcionam por curtos períodos de tempo (segundos) mas em esforços de alta intensidade.  Com estas características adoptaram-se igualmente duas terminologias para estes dois tipos de fibras: as fibras tipo I – tónicas ; as fibras tipo II fásicas.

4 - Glicogénio :  Após a ingestão de glucose, esta é estimulada pela insulina e integrada no sarcoplasma celular.  Aí, e  através de vários processos bioquímicos, é sintetizada em glicogénio (glicogénese).  O glicogénio, mais conhecido como um polímero de glucose, é sem dúvida uma das fontes energéticas mais utilizadas no trabalho muscular embora a sua concentração seja bastante limitada.  Esta pequena explicação, leva-nos muito logicamente à pergunta – qual das fibras musculares tipo I ou II contem mais glicogénio?  Segundo Gollnick, Amstrong, Saubert IV  e Saltin é difícil saber qual dos dois tipos de fibras contém mais glicogénio, no entanto, estamos em crer que pelas suas características glicóticas as fibras tipo II poderão, eventualmente, não possuir maiores concentrações de glicogénio, mas não há dúvida que são as que mais o utilizam.

5 – Lípidos intracelulares : A designação de lípidos intracelulares, em termos mais simples e gerais não é mais do que triglicéridos que fazem parte do sarcoplasma da célula muscular.

Fig. 8

Para melhor compreensão da explicação anterior apresentamos uma micro-fotografia de um corte transversal de células musculares. 

As três células destacadas, com vários pontos a negro, representam os triglicéridos referidos.  Devido ao seu metabolismo aeróbio ou oxidativo as fibras tipo I são as que contêm mais elevadas concentrações de triglicéridos sarcoplasmáticos, aliás as fibras da gravura são precisamente fibras musculares do tipo I.

Como já referi anteriormente, não vamos aqui desenvolver todas as características  diferenciais entre os dois tipos de fibras, por esse motivo achamos que as 5 diferenças apresentadas, já nos habilitam a entrar no tipo de exercício que devemos ou queremos, que os nossos cães pratiquem.

A grande maioria das raças caninas, a que nos habituámos a ver, nas nossas Exposições, exibem externamente características e reacções musculares, bastante idênticas.  No entanto, intrinsecamente a sua genética muscular difere, consoante o tipo de actividade ou trabalho para que ancestralmente foram destinadas, e embora esta seja uma das maneiras de podermos avaliar as diferenças genéticas musculares, não nos podemos esquecer que muitas desta raças, foram(a maior parte delas), transformadas em raças urbanas ou domésticas que já pouco têm a ver com os habitats naturais dos seus antecessores. Vamos pois, a partir dos vários elementos apresentados neste texto, antever qual ou quais os  resultados que obteremos, ao aplicarmos vários tipos de exercício físico aos nossos cães.  A primeira pergunta que nos surge é o que pretendemos atingir – endurance, hiper- trofia ou ambas.  Na maior parte dos casos, preferimos que os nossos cães possuam uma boa capacidade cardiovascular ou de endurance, capacidade essa que os torna animais mais activos e daí óptimos companheiros dos seus donos.  O cão hipertrofiado, por outro lado, embora também activo, apresenta um aspecto mais apelativo pelo seu pujante aspecto exterior.  O que devemos fazer para atingir qualquer destas metas.  Contrariamente ao que muitos criadores e até Juizes aconselham, a realização de grandes caminhadas diárias(1 a 2  Km), não vai trazer grandes alterações hipertróficas á massa muscular do seu cão. E porquê? – porque este tipo de exercício de características aeróbias, vai utilizar em profusão a capacidade de resistência muscular, resistência essa, que é  atribuída às fibras tipo I, utilizando como já o dissemos substractos energéticos como ácidos gordos e glucose acompanhada de uma maior vascularização por fibra muscular e consequentemente, melhor e maior aporte de oxigénio.  O elevado número de mitocondrias sarcoplasmáticas e seus enzimas oxidativos irá transformar estes substractos em energia para a célula na forma de ATP’s (trifosfato de adenosina).

 

Maratonista – tipo de físico seco, não hipertrofiado com grande resistência cardio- respiratória.

Nutrição no Desporto – Luís Horta

 

Fig. 9

Serve o quadro acima para ilustrar como se dá a regeneração de ATP’s (a ama- relo), a partir  do catabolismo da glucose quer pela via anaeróbia (letras a vermelho), quer pela via aeróbia(letras a azul).  No mesmo quadro pode-se igualmente ver qual a utilização dessa regeneração no processo muscular de contracção, relaxamento e transporte de cálcio para o ciclo muscular.  É de notar

uma incidente participação de O

2 (oxigénio) no processo aeróbio.

Passemos agora, a outra figura referente ao tipo de exercício aeróbico.

 

Fig. 10

Exercise Physiology

William McArdle

Frank Katch

Victor Katch

 

A figura 10 dá-nos uma ideia superficial das vantagens de exercícios de características aeróbias, dividindo-as em dois objectivos; - 1 desenvolvimento da capacidade da circulação central. – 2 aumento da capacidade aeróbia de músculos específicos.  Podemos novamente visualizar a cedência de O (oxigénio) ao músculo, sem o qual, a oxidação dos energéticos já descritos para a produção de ATP’s seria impossível.  Este tipo de exercício como já o dissemos não é de características hipertróficas, correspondendo a exercícios de baixa intensidade e longa duração, característicos da funcionalidade descrita para as fibras tipo I. Por outro lado, serve perfeitamente ambos os sexos dos nossos cães (machos e fêmeas), ao contrário do trabalho de hipertrofia que pelo menos exige a presença de testoesterona como elemento essencial para o aumento de massa muscular.  Mas não nos adiantemos e passemos à difícil tarefa, que é a hipertrofia muscular.  Como é que se define hipertrofia? – Segundo (Luithi, Howald, Claasen,  et al 1986) “a hipertrofia é o crescimento do músculo, em resposta  a treinos de sobrecarga ocorrendo primariamente com um alargamento das fibras individuais”, ou “o resultado da força gerada pelos músculos que pode ser relacionada com a área transversal seccionada” (Luhiti et al 1986; Gollnick, Timson, Moore e Reidy 1981).  O mecanismo da hipertrofia está relacionado com a síntese e engrossamento das miofibrilas(proteínas contrácteis), e o seu aumento em número, bem como o aumento volumétrico sarcoplasmático de mitocondrias, proteínas não contrácteis e líquidos intersticiais. Está ainda ligada a  outro factor, o “turnover” das proteínas, que pela sua complexidade e necessidade de utilização de termos e conceitos pouco vulgares, nos vamos escusar de comentar.

 

Fig. 11 Fig. 12

Vet.Histology
Dr. Thomas Caceci

Músculo - Corte longitudinal – sentido hipertrófico
traço a vermelho       

Músculo - Corte transversal – sentido
traço a verde

 

A hipertrofia muscular, obrigatoriamente tem de assentar num programa de treino, que envolve metodologicamente a realização de exercícios com cargas sub-máximas entre 80 a 95% 1RM ( 1RM= 1 repetição máxima) e de pouca duração. Existem autores que preferem percentagens de carga entre 70 a 85% 1RM, no entanto e em nossa opinião, o primeiro tipo de percentagem tem um maior impacto na utilização de unidades motoras rápidas com consequente utilização preferencial de fibras do tipo II, que como já o dissemos são as fibras que mais se identificam com a hipertrofia muscular.

 

Fig. 13

Culturista – grande hipertrofia muscular

                            

Gary Strydom      Muscle Mag International  

Não pensemos porem, que a hipertrofia, depende exclusivamente da parte mecânica e do grau de intensidade do exercício. Temos obrigatoriamente que incluir a participação hormonal, sem a qual não será possível a obtenção de quaisquer resultados.  Por essa razão é que já nos referimos, há existência da testoesterona, pois que, não basta ser macho para possuir níveis desta hormona em quantidades aceitáveis para accionar o lado anabólico, o qual se traduzirá em efeitos lipóliticos e de síntese proteica acelerada.

 

 

Fig. 14

Bodybuilding

A Scientific Approach Frederick C. Hatfield Ph.D.

 

A gravura acima tem unicamente um significado ilustrativo, pois como é natural, não nos vamos debruçar sobre o aspecto, propriedades ou nomenclatura molecular.  Os níveis de testoesterona são baixos na pré-puberdade, na terceira idade e nas fêmeas, donde os efeitos de exercícios de alta intensidade e curta duração, não obtêm os mesmos resultados de que em machos na sua plenitude.

Para que o processo hipertrófico descrito não seja considerado incompleto, deveríamos incluir o papel endógeno da HGH (Human Growth Hormone), – e suas implicações na formação de IGF 1 (Insulin Growth Factor 1), no entanto mais uma vez iríamos entrar em explicações demasiado complicadas, que não são o objectivo deste artigo.  Vamos pois passar à conclusão e tentar aplicar o que foi descrito ao longo deste trabalho:

CONCLUSÂO

1 -  Julgo ter-se atingido o propósito deste artigo, que destrinça o trabalho de características aeróbias, que se traduz por esforços de baixa intensidade e longa duração, do trabalho anaeróbio de alta intensidade e curta duração.

2 – O trabalho aeróbio tem como resultado o incremento cardiorespiratório (endurance), aumento vascular e do número de mitocondrias por célula.

3 – O trabalho anaeróbio de alta intensidade resulta em hipertrofia muscular, ligeiro congestionamento capilar, aumento do volume mitoncondrial.

4 – Perante os pontos acima, pergunta-se: como pôr em prática estes conceitos?.  Não nos compete, logicamente, apresentar receitas ou métodos de trabalho pois que em Portugal já existem vários e bons treinadores de cães (nós não o somos), que possivelmente sem olhar à parte teórica utilizam na prática os fundamentos já descritos.

5 – Para finalizar deixamos aqui, muito modestamente a nossa opinião, sobre quais os tipos de treino(aeróbico ou anaeróbico), que devemos utilizar.  Em nossa opinião e para que o exercício seja um bom contributo para a saúde e longevidade dos nossos cães o programa a utilizar chama-se “cross training”, que não é mais do que a alternância entre os dois sistemas.

Extraído so site www.redevet.com.br