Dentro das atribuições desta diretoria está o fomento de discussões de temas pertinentes à criação, entre os quais um dos mais polêmicos é o da consangüinidade, i. é, o cruzamento de parentes próximos, podendo chegar até mesmo ao de irmãos inteiros. Evidentemente, quando tocamos nesse assunto, não estamos nos referindo à consangüinidade por acomodação, ou seja, àquele “criador” que para não procurar coberturas de terceiros nem investir em sangue novo, simplesmente cruza o que tem em seu quintal, sem maiores preocupações com resultados. O que queremos discutir aqui é a consangüinidade como critério de criação, inserido em um projeto de obtenção de exemplares cada vez mais aprimorados dentro da respectiva raça. Muitos criadores são ardorosos defensores desse critério, enquanto muitos outros, na mesma proporção, não podem nem ouvir falar em tal coisa, e a bibliografia existente possui opiniões para todos os gostos. O regulamento de criação da CBKC adota um meio-termo, condenando o acasalamento entre irmãos inteiros (salvo como exceção autorizada pela área técnica do clube) mas liberando os demais parentescos. Nós, como Diretoria de Criação, temos restrições à consangüinidade, mas sem fazer disso questão fechada. Enfim, vamos à discussão.
Os defensores da consangüinidade argumentam que com isso conseguem se manter sempre dentro de um mesmo tipo, apenas aprimorando-o: os defeitos são conhecidos, consequentemente podendo ser facilmente apartados, e não são introduzidos novos, ao passo que as qualidades existentes são fixadas. No caso de sangue novo, prosseguem os argumentos dessa linha de pensamento, podem ser introduzidas novas qualidades, mas também novos defeitos, e corre-se o risco de perder o tipo sem chegar a um outro.
Aparentemente faz sentido, e talvez funcione, mas apenas no caso de estarmos frente a um plantel tão aprimorado e uniforme que, de fato, qualquer aporte de sangue novo só tenderia a rebaixar a média de qualidade dos exemplares. Porém trata-se de uma situação ideal, na qual talvez não haja canil no mundo que se enquadre, pois sabemos muito bem que mesmo o melhor e mais famoso canil possui seu “time B”, bem escondidinho. Discutindo a realidade, e não situações hipotéticas, o que temos normalmente é um plantel que constitua uma população estatisticamente gaussiana, com a maioria dos exemplares se enquadrando em torno de um nível médio de qualidade, uma minoria tendo qualidades acima da média e uma outra minoria, inversamente, tendo qualidades abaixo da média. Se só praticarmos a consangüinidade nesse plantel (vejam bem que não estamos dizendo para nunca praticá-la), teremos a formação de um sistema geneticamente fechado, com dois efeitos indesejáveis, a saber:
O tipo característico e as qualidades do plantel de fato terão fixação, mas como não serão introduzidas novas qualidades, a tendência a média e longo prazos será a de fixar um tipo mediano, sem evolução, e isso não é criação no sentido do objetivo de se procurar sempre o aprimoramento da raça.
Não serão introduzidos novos defeitos, mas os já existentes serão fixados. Como defeitos geralmente são recessivos, a consangüinidade excessiva ao fixá-los torna-os dominantes dentro do grupo em questão, comprometendo o pool genético da raça. Um exemplo disso: todo cinófilo está familiarizado com a situação de uma determinada linhagem desta ou daquela raça ser imediatamente identificada em pista por algum defeito característico.
Os defensores da consangüinidade não contestam essas contra-indicações, mas argumentam que nunca negaram a necessidade de um exame rigoroso dos produtos dos acasalamentos consangüíneos, com a seleção de uns poucos melhores exemplares. Ora, isso é um contra-senso, pois como garantir que a massa de exemplares rejeitados não seja usada em reprodução nas mãos de terceiros, rebaixando o nível da raça? É óbvio que não vamos defender a eliminação ou a castração desses exemplares, a única medida propugnável sendo a prevenção via critérios melhores de criação. Além disso, o objetivo da cinofilia não é produzir uns poucos best-in-shows e sim melhorar constantemente o pool genético da raça e a média de qualidade da criação, com o melhor compromisso possível entre quantidade e qualidade.
Há porém situações em que a consangüinidade é de fato não só o melhor a fazer como até mesmo inevitável: quando o plantel local de uma dada raça está tão comprometido que não resta outra opção que não seja selecionar os poucos exemplares de qualidade e fazer com eles diversos inbreeding de modo a formar um núcleo de exemplares de nível. A seguir seriam adquiridos bons exemplares de sangue novo que cruzariam com os desse núcleo, começando a reconstrução do plantel da raça. Notem que não adiantaria diluir o sangue de alguns bons exemplares de fora em uma massa de exemplares de baixo nível (esse procedimento errôneo muitas vezes explica porque vários exemplares importados nada geram de qualidade); por isso é fundamental a formação prévia desse núcleo de excelência dentro do plantel da raça.
Por outro lado, também não é possível introduzir sangue novo indefinidamente. A diluição das características genéticas seria de tal ordem que se chegaria a uma absoluta indefinição sobre a fenotipia da criação. Como em tudo na vida, o segredo está no equilíbrio, combinando outcrossing para a introdução de novas qualidades e impedir a fixação de defeitos com posterior inbreeding de exemplares selecionados para a fixação de um fenótipo de elevado nível (p. ex.: retrocruza de netos com avós).
O ideal seria fugir da subjetividade, com um meio objetivo de calcular o índice de consangüinidade de uma cruza, o que nos orientaria para a decisão de consumá-la ou não, pois a cada momento saberíamos com que nível de consangüinidade estaríamos lidando, podendo evitar o excesso. Pois bem, felizmente a fórmula para isso existe, mas é assunto para um outro artigo. Aguardem o próximo capítulo!