O cão ainda é o melhor guia. Só o Brasil não vê


Jornal da Tarde, 06/05/2001

O uso de cães como auxiliares na orientação de deficientes visuais é quase nulo no País. Mas isso pode mudar com a Escola de Cães Guias Helen Keller.

Divulgação

Moisés dos santos JR, o economista que virou instrutor de cães guias

 

 

O uso de cães como auxiliares na orientação de cegos é uma prática antiga e bem difundida pelo mundo. No Brasil, porém, ela só chegou há poucos anos, e é conhecida praticamente apenas por filmes estrangeiros – sabemos que estes cães existem, mas muito poucos viram um de perto. Só no ano passado, em julho, foi aberta a primeira escola de cães guias do País, reconhecida pela Federação Internacional de Escolas de Cães Guias de Cegos, que reúne 75 entidades do gênero e tem sede em Londres. Trata-se da Escola de Cães Guias Helen Keller, implantada em Florianópolis (SC) com o apoio dos clubes Lions de todo o País.

A escola surgiu e funciona na capital catarinense devido à iniciativa do proprietário do Praia Mole Park Hotel, Augusto Luiz Gonzaga, de 67 anos. Nascido em Santa Catarina, ele viveu 40 anos no Rio de Janeiro, onde exerceu a profissão de médico hematologista e dirigiu uma instituição sem fins lucrativos dedicada a pacientes hemofílicos.

“Um dos grandes problemas deles é a dificuldade para caminhar. Percebia que alguns pacientes, os mais pobres especialmente, nem saíam de casa devido à dificuldade de locomoção. Então pensei que os cães guias, que eu conhecia de viagens ao Exterior, pudessem ser úteis para eles”, lembra Gonzaga. Quando se aposentou e voltou a morar em Florianópolis, há cinco anos, Gonzaga manteve a decisão de criar um programa de cães guias, porém voltado aos cegos.

Procurou informações junto à Federação Internacional, que indicou a escola da Nova Zelândia como a única no mundo com cursos para instrutores de cães guias abertos a estrangeiros. Gonzaga queria enviar alguém para fazer o curso, o que possibilitaria abrir uma escola no Brasil.

Nesse meio tempo, Moisés Vieira dos Santos Júnior, hoje diretor técnico da Helen Keller, soube que a Royal New Zealand Foundation for the Blind (a escola neozelandesa) estava admitindo um brasileiro, e se candidatou à vaga – não conhecia Gonzaga ainda. Moisés foi selecionado para o curso entre quase 40 candidatos – escolhido em comum acordo por Gonzaga, que financiou sua estada na Nova Zelândia, e Ian Cox, gerente geral da Guide Dog Services, uma divisão da Royal New Zealand Foundation for the Blind.

O curso de instrutor de cães guias na escola da Nova Zelândia dura quatro anos, e um dos pré-requisitos para os candidatos é possuir terceiro grau completo. Paulistano, 36 anos, Moisés é economista formado pela Faculdades Metropolitanas Unidas, e chegou a atuar por sete anos nas áreas financeira e de comércio exterior. “Gosto do ramo, mas não queria mais trabalhar atrás de uma mesa, em ambiente fechado”. Ele já estava cansado de ficar preso em um escritório quando ganhou uma viagem à Austrália em um sorteio.

Foi aí que sua vida começou a mudar. Na Austrália, ele viu pela primeira vez cães guias trabalhando. De volta ao Brasil, não se acomodou mais na profissão, e logo em seguida foi para a Inglaterra, onde trabalhou como garçom. “Eu sempre via cães guias em congressos e convenções. Além disso morava num bairro onde um casal usuário de cão guia tomava o mesmo metrô que eu diariamente. Comecei a admirar e a me interessar por aquilo”, relembra.

Aprendizagem intensiva

O curso na Nova Zelândia é extenso porque as habilidades requeridas do instrutor vão muito além de comandar bem os cães. Ele também precisa saber lidar bem com gente. O instrutor precisa entrevistar os interessados em possuir um cão guia e avaliar suas capacidades e restrições para saber se podem de fato tê-lo. Precisa treinar 20 cães no período do curso. Precisa saber reunir as características dos potenciais donos com os cães disponíveis, formando os melhores “times de graduados” – como são chamadas as duplas de deficientes e seus cachorros – possíveis. “Muitas vezes, a pessoa tem tudo para ter um cão guia e o cão em potencial é ótimo; mas, devido a diferenças de personalidade, aquele cão não serve para aquela pessoa”, explica Moisés.

A formação do instrutor inclui ainda cursos de assistente de veterinário e de orientação e mobilidade, quando precisa permanecer com uma venda nos olhos em sessões que duram de cinco minutos até quatro horas. O objetivo é a aquisição de uma percepção mais adequada de como repassar informações a pessoas cegas, respeitando seus ritmos e peculiaridades.

O cão guia não é entregue ao deficiente visual sem que a dupla tenha em conjunto de três a cinco semanas de aulas – cada uma com três horas de duração (o período pode se estender, se necessário, conforme o ritmo do aprendizado).

Na etapa da instrução, o estudante – que é quem de fato está em treinamento nesta fase – aprende a lidar com o cão sob os mais diversos aspectos, como nutrição, higiene, saúde etc. Aprende ainda os diversos comandos aos quais o cão responde; como e quando permitir ou reprimir ações do cão e até a “negociar” com seu guia trajetos variados.

Antes da instrução das duplas, porém, os cães são “humanizados” em um período de um ano a um ano e meio de convivência com famílias voluntárias no cumprimento desta tarefa. Esta socialização é importante, explica Moisés, para que o filhote (de sete semanas até 18 meses) aprenda a andar em todos os lugares onde normalmente uma pessoa anda na cidade – ruas, supermercados, escadas, escadas rolantes, escolas, metrôs, restaurantes.

Ainda antes de ser destinado a um portador de deficiência visual, o cão – agora entre 18 e 24 meses – deve passar por um treinamento intensivo de três a cinco meses de duração, com um instrutor ou treinador (profissional que faz um curso de menor duração do que o de instrutor – na escola da Nova Zelândia são dois anos – e aprende a lidar exclusivamente com os cães, não sendo responsável pela integração destes com seus donos).

É neste treinamento que o cão aprende a obedecer (há comandos como deitar, sentar, ficar etc.), a andar em linha reta, parar nas esquinas, desviar de obstáculos móveis e fixos, encontrar destinos específicos, andar a uma velocidade compatível com a área em que se encontra (congestionada ou livre), entre várias outras coisas.

Existem cerca de 20 raças de cães com potencial para se tornarem cães guias, mas as mais utilizadas são Labrador Retriever, Golden Retriever e Pastor Alemão. Quase todos os poucos usuários de cães guias brasileiros têm labradores doados pela Leader Dogs for the Blind, escola norte-americana que é uma das maiores do mundo e onde Moisés estagiou. A Leader Dogs tem um convênio com a Helen Keller para a doação de oito cães por ano. Também fornece estada e alimentação gratuita no período de instrução dos estudantes brasileiros. “Nós só precisamos encontrar formas de custear as passagens”, diz Moisés.

Adaptação

Quando o cão é finalmente entregue ao dono, começa um período fundamental na convivência de ambos. É o momento da adaptação. “Os três primeiros meses são críticos, pois tudo o que acontecer nesse tempo estará marcando um padrão”, realça Moisés. “Nesses três meses, procuro estar pelo menos em contato quinzenal com o time de graduados. Preciso saber como está o trabalho em relação a tudo. Peço que as pessoas não me escondam nada, pois às vezes ocorrem erros. Peço que contem tudo, que falem de todos os erros, pois é melhor consertá-los logo de início do que depois, quando se tornam vícios”.

Os erros de que Moisés fala podem resultar em acidentes como bater a cabeça em um telefone público ou cair em um buraco. Não é fácil para o cego, que em geral já usou bengala e aprendeu a se desviar dos obstáculos após tocar neles, depositar total confiança em um animal. “É um estresse muito grande”, admite o instrutor.

Apesar das dificuldades iniciais, Moisés não tem dúvidas sobre as vantagens do cão guia. “A vida do deficiente visual dá um enorme salto de qualidade”, assegura. “Do ponto de vista da sociabilidade, a mudança é incrível: a bengala parece repelir os demais, que se afastam. Com o cão guia, as pessoas se aproximam, querem saber de que raça é, fazem comentários. O cão costuma ser motivo para puxar conversa”.

Silvana Pisani, especial para o JT

 

 

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